segunda-feira, 24 de setembro de 2007

"quando mais precisamos de amor
não há amor que nos valha.
mais vale comer um bom bife."

esta frase andou durante tempos escrita pelos meus cadernos da faculdade, e volta e meia volta-me à cabeça e continua a fazer-me sentido. foi dita por uma mulher fantástica que generosamente me deixava assistir às suas aulas. belga a viver a portugal, com um filho autista que era o seu exemplo de vida, ensinava, muito além dos clássicos da literatura inglesa e do colorido dos filmes do almodovar a que tantas vezes se referia, a simplicidade mais pura que encerra os grandes duelos que todos nós travamos no mais comezinho da nossa vida.


e a vida começa com a derrocada. a primeira coisa que fazemos é rasgar a carne da nossa mãe.

noutro tempo eu sorvia o futuro, a resposta ao insondável imprevisível, noutro tempo a minha ansiedade compelia-me a coleccionar hipóteses.
noutro tempo urgia em mim a necessidade da justificação. era vital que me ouvissem, e eu esgotava-me num chorrilho de palavras no desespero de acertar naquela que destrancava os portões fechados e permitia ao tempo voltar ao ouro.
estranho em mim neste momento a placidez do silêncio. não posso dizer que seja apatia ou cansaço. é mais a convicção de que não posso prever ou anular as reacções às acções, a aceitação tácita de que nem sempre se pode voltar a abrir aquilo que fechei à minha passagem.
do lado de fora, causa-me uma certa estranheza ver-me assim sem desespero. dói e amargura, mas olho e espero apenas que passe depressa. não sei se o desalento acumulado se sublima nesta frieza. mas de certa forma torna tudo mais fácil ou, pelo menos, menos difícil.
e depois há sempre mais para além da nossa dor umbilical.

"os amigos trazem-nos a oxigenação", dizia-me ela, a que é minha irmã, a que me vê reflectida com uma imparcialidade que eu não consigo. é verdade. antes da próxima curva comparecem ao encontro várias pessoas, e nem todas vão embarcar connosco. mas também há aquelas que chegam sem as esperarmos e nos trazem um novo alento e ar fresco para respirar. ou terra nova para semear. ou que nos abanam para nos obrigar a voar. e há aqueles abraços que nos aquecem quando acordamos com frio.

há sempre vida à nossa volta, mesmo quando tudo está em declínio. a ruptura traz o movimento que impulsiona
a vida. como foi no início.



*francesca woodman

3 comentários:

Berta Cem Mil disse...

não há só vida à nossa volta, mas também dentro de nós. e amor a pulsar... por mais que lhe queiras ser indiferente, olhando para ele como se não fosse teu.
mas claro que um bom bife vem sempre a calhar. dá-nos menos chatices que o amor, embora às vezes seja igualmente difícil de encontrar...

eu, pessoalmente, sou contra as rupturas. prefiro as metamorfoses. dos sentidos, dos sentimentos, dos significados. é mais fácil reconstruir do que construir a partir do nada.

um beijo meu. e saudades.

Anónimo disse...

delicia-me ler palavras sobre a maravilhosa belga. a mim, as palavras dela que ainda hoje me ecoam na cabeça são outras: os seres humanos não têm qualidades ou defeitos, mas sim características. acho sempre bom olharmos para trás e vermos que as nossas características mudam. é sinal que estamos a aprender cada dia mais. mas isto digo eu que sou uma corrente de ar.

Mei disse...

berta querida, a carne anda pela hora da morte! e sim, o amor vive-nos no sangue mesmo quando parece uma cicatriz roxa. mas às vezes a metamorfose, sendo mais fácil, pode ser mais dolorosa. às vezes é preciso nova matéria-prima ...
beijo para ti. é sempre um deleite ler-te.

anónima e és a minha corrente de ar predilecta! escrever sobre essa senhora é bastante redutor, como sabes, pois só quem a conheceu sabe que é uma grande Pessoa e uma grande Professora.