domingo, 17 de dezembro de 2006

Sou pla Carris...

Quase todas as pessoas que conheço implicam, ou quanto mais não seja questionam, a minha total preferência por andar de autocarro. "Mas porquê, M...? O metro é muito mais rápido, os autocarros demoram muito mais, atrasam-se, vêm sempre cheios... E o Metro chega a todo o lado..." - dizem os que ou ainda não conhecem bem a minha teimosia, ou ainda têm esperança de a poder contornar...
Pois bem! Depois de muitos anos a andar exclusivamente de metro, agora é com orgulho que vou para todo o lado de autocarro, nem que tenha de trocar duas e três vezes até chegar ao destino, nem que esteja uma hora em cada paragem! O Metro é demasiado intimista para o meu gosto. Para começar, entrar num túnel escuro e frio só por si não é cenário muito acolhedor. E mesmo as novas estações de ar limpo e arejado são sempre demasiado frias, demasiadamente assustadoramente grandes.
O autocarro faz parte da cidade, flui com a cidade, não vive ao lado dos esgotos dela. À espera do metro olhamos para uma linha de ferro. Há lá coisa mais deprimente? E aquela linha amarela pintada no chão, a desafiar perigosamente a morte, como que a dizer "vá, salta para aqui! É tão fácil e vais ver que todo o teu sofrimento passa num instantinho, à distância do tempo de espera do próximo Metro..." As viagens de metro são sempre entaladas, demasiado curtas, demasiado forçadas. Ou se tem espaço para cada pessoa ir no seu canto a olhar para o chão para que o seu olhar não se cruze com o de ninguém, ou se se olha pela janela o reflexo causado pela escuridão do túnel faz com que muitas vezes acabemos por fechar o olhar no de outra pessoa... e esses encontros românticos para mim só têm piada nos filmes. Quatro pessoas sentadas apertadas frente a frente, têm que se encarar. É inevitável que os meus vizinhos se apercebam se ando a ler literatura de cordel, é inevitável bisbilhotar a revista da senhora ao lado. E se vou com companhia, ainda é pior. Qualquer conversa, por banal que seja, que eu travar será nitidamente ouvida por quem vai na mesma carruagem, acabando eu por ter vários pares de olhos postos em mim, quando nem gosto de ter assistência. E nos dias em que o metro vai à pinha, os corpos comprimem-se uns contra os outros de forma absurdamente embaraçante. Já me aconteceu acabar por ir de cabeça colada ao peito de um fulano que nunca mais vi na vida....
Quando estamos à espera de um autocarro, observamos a vida daquela rua, e as pessoas vão chegando e perguntando se já lá estou à muito tempo, etc... Tendo em conta que deve ser o transporte de eleição da terceira idade, das pessoas que cresceram com Lisboa, é quase certo que apanho uma ou outra senhora sôfrega de conversa, ansiosa por partilhar comigo as travessuras do seu Tareco. E mesmo nos meus dias mais amargos, isso em vez de me puxar para a morte, como acontece com o Metro, desperta-me para a ternura da vida.
Os motoristas da Carris vêem os passageiros, interagem com os passageiros. Quando alguém precisa de ajuda para entrar as pessoas mobilizam-se, quando um gajo entra à penetra começa a barulheira. Andar de autocarro é do melhor para sentir a cidade. As pessoas manifestam-se, gritam, dão opiniões, praguejam. É opcional tomar parte ou então abstrair-me, olhar para o lado enquanto a cidade desfila pela janela. Para quem como eu venera cada centimetro de Lisboa é um momento de raro prazer.
E ainda hoje fui num autocarro à pinha. Também é incómodo, claro, mas é diferente. O motorista era muito dinâmico, ainda jovem. Quando a certa altura entra uma rapariga com um bebé ao colo ele disse-lhe: "Não saio daqui enquanto alguém não lhe der um lugar pra se sentar!" Como ninguém desse, repetiu o mesmo bem alto, e não arrancou. Por fim, alguém se levantou e lá seguimos viagem, enquanto algumas pessoas gritavam efusivas "Assim é que é! Deviam fazer todos o mesmo!" (Há lá coisa mais pitoresca?) Eu sorri comigo mesma enquanto olhava para as pessoas que seguiam ao lado, na rua. Já desisti de me tentar sentar. Há sempre alguém a apontar-me quase furiosamente a bengala.
Andar de autocarro é fazer uma viagem verdadeiramente colectiva. Naquele espacinho de tempo que dura o percurso, há dez, vinte ou cinquenta pessoas que vão realmente todas para o mesmo lado.

1 comentário:

Rooibos disse...

"Já me aconteceu acabar por ir de cabeça colada ao peito de um fulano que nunca mais vi na vida...."
Quando cheguei a esta parte tive de me largar a rir no meio da sala dos professores!...
Escreves tão bem, bolas!... Se eu quisesse publicar algo do mesmo nível só poderia recorrer às minhas actas...
Bjs